Analogia do avião

Quando eu era moleque e estudava para tirar o meu brevet, tínhamos uma matéria chamada Navegação Aérea. Essa matéria causava pavor nos alunos justamente porque, na prova teórica do DAC (hoje ANAC), tínhamos um exercício de navegação que era responsável por bombar boa parte dos candidatos (e muita gente bombava). A coisa levava certo tempo, pois todos os cálculos tinham de ser feitos na unha. Os milicos não perdoavam, e o tempo para fazer a navegação era curto (além de responder uma porrada de outras questões sobre meteorologia, mecânica, regras de tráfego aéreo, etc). E errar era muito fácil. O “computador” de bordo não tinha bateria nem funcionava com energia. Era no dedo, no lápis com apoio de um computador de bordo manual (pense num pequeno trambolho, uma espécie de “ábaco para aviação”… eu usava um Jeppesen E6B, um clássico).

A navegação aérea, como o nome sugere, consiste em planejar o voo, da decolagem ao pouso. Numa prática destas, um dos primeiros passos é calcular o consumo de combustível até o “TOC” – top of climb, ponto que simboliza a transição entre a subida e o voo dito “de cruzeiro”. O lance é fazer o cálculo do gasto de combustível de acordo com a altitude. O consumo varia de acordo com a pressão atmosférica, entre outros fatores. Além disso, deve-se calcular o tempo estimado para completar a subida até o TOC, que pode variar de acordo com regimes de potência, variação de pressão atmosférica, etc. Um planejamento de voo perfeito não existe, pois é impossível considerar os n fatores e variáveis envolvidos. Pense na quantidade de variáveis e mudanças existentes na atmosfera, por exemplo. Dá para prevê-las?… Obviamente não. Ainda sim, para qualquer voo, para qualquer avião, o planejamento deve existir, obrigatoriamente. Algumas constantes básicas e conhecidas, tais como razão de subida, tipo de combustível utilizado, pressão ao nível do mar (dada pelo último METAR) e outras coisas que eu devo ter esquecido devem ser consideradas antecipadamente. Em outras palavras: mesmo em um ambiente caótico, cheio de variáveis imprevisíveis e desconhecidas, é uma boa coisa seguir alguns rituais e fazer algum planejamento.

No aeroclube (e no auge dos meus 17 anos) fazer um plano de voo completo era tarefa tediosa e sacal. Eu gostava mesmo era de encher o tanque do PA18 (um aviãozinho delicioso que me faz sonhar até hoje), ligar o motor, taxiar e flanar sem rumo, apenas curtindo o visual e a sensação de controle sobre a máquina… Flanar sem rumo, ao sabor dos ventos, era a maior diversão possível para um adolescente tímido e meio nerd como eu. Mas e se eu quisesse chegar a algum lugar? Se eu quisesse sair do aeroclube que estava e ir até outro, em outra cidade? E se eu tivesse que ter um objetivo, uma meta? Na verdade, eu até poderia ver a questão olhando um pouco além do destino, da meta e/ou objetivo. Eu poderia pensar em segurança, por exemplo. Ao contrário de se dirigir um carro, em um avião (qualquer um), caso algo dê errado, você não pode simplesmente parar, encostar, desligar o motor e descer, com os pés firmes no chão. Ao tirar o avião do chão, é bom você já ter alguma ideia de como vai fazer para colocá-lo de volta, seja de onde você saiu, onde pretende chegar ou alguma coisa no meio do caminho…

Empresas, Aviões, Projetos e Voos

Empresas podem ser vistas como aviões, em certo ponto. Projetos, podem ser vistos como voos, também em certo ponto. Foi-se o tempo sintetizado pelo slogam: “remember when flying was dangerous and sex was safe”… Pilotos viraram gerentes de uma máquina complexa, que deve ser gerenciada corretamente, para segurança dos passageiros e lucratividade de uma empresa aérea (as vezes essa ordem se inverte, mas isso é uma outra história).

Em empresas de TI, em especial aquelas que dependem (ou são voltadas) para o desenvolvimento de software, tenho visto uma série de tentativas sofisticadas para justificar a ausência de qualquer planejamento. Diz-se que, como tudo muda o tempo todo, qualquer forma de planejamento tradicional é perda de tempo. Fala-se em Teoria do Caos, em Sistemas Complexos, em Emergência e afins. Tenho visto também ataques carregados de ironia e exemplos de falhas (esquecendo-se convenientemente dos sucessos) à metodologias, processos e ideias de organização de trabalho, inclusive os frameworks ágeis mais clássicos (e “amarrados”) como Scrum, como se fosse possível passar de um estado de caos e/ou de rigidez diretamente a um estado de “nirvana ágil” num estalar de dedos.

Voar por diversão

Um tipo de voo particularmente divertido, onde existem poucas coisas a se considerar – do ponto de vista de custo, destino, conforto e até mesmo segurança – é o voo de planadores. Voar a vela é sensacional, é belo. Uma experiência única. Um planador tem pouquíssimos instrumentos em seu painel, em grande parte porque você está ali para voar, não para apertar botões, seguir check-lists ou um plano de voo estabelecido. Você está ali para satisfazer unicamente você e seu desejo de liberdade, de flanar. Voa-se pelo simples prazer de voar, respeitando apenas regras locais e básicas. Tem-se apenas um manche, dois pedais e o ar passando pela asa. É física pura, é poesia. Pode ser visto até como arte, para aqueles que tendem a comparar qualquer atividade intelectual como “arte”. Contudo, no voo à vela, salvo raríssimas exceções, você decola com auxílio de um avião e volta ao mesmo lugar de onde saiu…

Voar por obrigação

Agora pense e um 737 com 190 passageiros a bordo. Vá um pouco mais longe e pense numa companhia aérea que tem vários 737s, 757s, A320s, etc no ar. Experimente falar que processos e check-lists são inúteis. Vá além: experimente dizer isso para os passageiros destes aviões, clientes da sua companhia aérea. Diga que tudo o que se conhece sobre gestão e/ou desenvolvimento de software (seja “ágil” seja “tradicional”) está errado, pois o mercado de aviação, o preço do querosene, a natureza da atmosfera e uma série de outras questões são dinâmicas demais para qualquer tentativa de controle/previsibilidade… Já imaginou dizer, depois de decolar, que você ainda não sabe muito bem onde e quando vai pousar, mas que em algum momento você vai fazer isso, de alguma maneira. Na sequência, experimente dizer que você, piloto de uma empresa de aviação “startup”, decidiu que para estar preparado para “pivotar” a qualquer momento, que você vai ficar dando umas voltas por aí, sem compromisso, até que um destino seja definido, ao sabor das ocasiões e oportunidades. Faça isso de preferência usando explicações sofisticadas, apelando para teorias exóticas e/ou de escala planetária/universal… Oras, todos deveriam saber que pequenas variações (ventos na hora da decolagem ou em rota, por exemplo) tendem a levar a resultados (e destinos) imprevisíveis, e que por isso pouco adianta planejar ou dizer onde o avião vai pousar… Mostre uma foto de um pedaço do A330 da Air France que sumiu no meio do atlântico e dê uma risadinha como quem diz: “viram no que dá?”… Esses caras planejavam, mas mesmo assim caíram no meio do oceano por conta de uma anormalidade atmosférica…

Sobre o Caos e “arte” de voar e administrar

Com o popularização do Agile no país e também da idéia de que é possível associar a Teoria do Caos à gestão de empresas, tenho visto muitos gurus falando coisas que me deixam arrepiado. Normalmente eles seguem alguns padrões argumentativos. O primeiro, é o que prega que empresas em geral, em especial das de TI, são organismos complexos, e que que por isso, devem ser vistas e geridas sob uma regra/ordem diferente da tradicional. Devem ser analisadas sob a ótica da Teoria do Caos, por exemplo. Para os defensores desta linha, estar no limite entre a ordem e o caos (“The Edge of Chaos”) é condição necessária para que uma empresa seja criativa, para que cresça, saia de uma velocidade “normal” e passe para uma velocidade “diferenciada”. Em suma, é condição necessária para uma empresa ter sucesso, ser inovadora. Eu discordo. Se você parar para pensar, a maioria das organizações situam-se nesta exata posição limítrofe (quem aqui não trabalhou, trabalha ou conhece uma empresa, grande ou pequena, que era uma verdadeira zona?), e mesmo assim, inúmeras falham. Eu inclusive diria que, ao contrário, estas falham cada vez mais à medida que ficam mais próximas do caos do que da ordem. Na minha opinião, empresas que fazem sucesso ou fracassam não o fazem por estarem dentro ou fora do limite do caos, nem são tão influenciadas por isso, pelo contrário. Competência, sorte e timing, por exemplo, influenciam o sucesso ou fracasso muito mais que um simples “estado” das coisas. Talvez estar no limite do caos e ordem seja o “estado” mais adequado para que regras e ordem emerjam, dando lugar a uma nova ordem, melhorada e revisada. Noto, contudo, que a tendência é sempre pela ordem. Por isso, buscar a ordem, mais do que buscar o caos, é fundamental. Em algumas empresas não existe tempo para que o sistema se auto-organize da forma como acontece na Natureza, por exemplo. Aliás, o exemplo de seleção natural é usado com frequência para dar crédito a essa vertente de pensamento “caótico” (toda vez que alguém usa a analogia de seleção natural para empresas eu imagino Darwin se remexendo de raiva em seu caixão)… Na escala de tempo de uma empresa, não há tempo para que as regras sejam estabelecidas sozinhas. Não faz o menor sentido comparar a escala de tempo (e as variáveis existentes) de uma empresa ou mesmo de uma vida humana com às existentes na Natureza, com a escala de tempo natural (pense em éons, eras e afins). Em aviação de médio e grande porte, assim como em empresas, devem prevalecer processos, check-lists, comunicação (que pode significar documentação, para horror de alguns), procedimentos e regras bem definidas – de preferência inteligentes, simples e seguras. Voe regido pelo caos, ou mesmo no “limite do caos” e você poderá fazer algumas coisas surpreendentes, mas certamente perderá passageiros por atrasos e ineficiência. “Voe” assim e provavelmente você verá seu dinheiro correndo para o ralo (ou, se preferir, pelo fuel dumper)…  No Caos você até pode encontrar uma ordem, um padrão, mas isso talvez vá levar o mesmo tempo que levou para que cardumes pudessem caçar em conjunto (e eficientemente), sem seguir um “plano”. Eles levaram milhões de anos, várias tentativas e erros, várias gerações e, principalmente, vários indivíduos, que se sucederam (nasceram e morreram), na dança da evolução natural, para atingir este estágio sublime. Quanto tempo você precisa para que a sua empresa se (auto) organize? Quanto tempo ela terá para encontrar uma ordem e encontrar colaboradores dotados do nível de comprometimento necessário para que isso aconteça? Uma andorinha morre se não estiver comprometida com seu grupo, se não se inserir, se não auto-organizar com este. Será que o mesmo se aplica a funcionários, na escala de tempo de uma empresa? O comprometimento é outro, a entropia idem.

O segundo padrão de argumentação é aquele que diz que tecnologia, em especial desenvolvimento de software, é uma atividade artística (mesmo quando é feita dentro de empresas). Eu acho esta comparação pretensiosa, no mínimo. Se eu pudesse fazer uma comparação sobre programação com outra atividade intelectual, talvez usasse o Jornalismo. Um jornalista, quando escreve um texto, uma reportagem ou qualquer outro conteúdo em qualquer mídia, pode sim imprimir seu estilo pessoal, seu “toque” e afins. Entretanto, ele normalmente estará sempre comprometido com a data de entrega da matéria, em primeiro lugar. Afinal, a edição de domingo não vai esperar ele terminar para ser impressa e ganhar as ruas… Em aviação, atendimento ultra-personalizado, poltronas de couro de antílope do himalaia, soluções inovadoras de embarque, ideias geniais de serviço e entretenimento a bordo, aeromoças bonitas e simpáticas, pilotos simpáticos e engraçadinhos em seus speeches, são muito importantes. Contudo, antes de oferecer isso, você deve se preocupar em oferecer primeiro o que é prioritário neste caso: levar o passageiro para o seu destino, no tempo e no horário escolhido por ele, com margens mínimas de atraso.

Seguir processos e ter métodos não significa impossibilidade de mudar, não significa ir contra a inovação, deixar de ser ágil, ser estático ou qualquer coisa do gênero. Significa, simplesmente, tentar (e conseguir, quando possível) manter a ordem ao invés do caos, mesmo que este estado de ordem seja temporário, até que uma nova ordem, um novo produto, prática, etc, esteja pronto para escalar… (ou voar). Afinal, os passageiros não estão interessados em esperar você bolar, enquanto voa e gasta combustível, um jeito novo e revolucionário de pousar o avião. Ou então, que o pouso seja mera obra do acaso (ou da “ordem emergida do caos”, se você preferir).

Ordem e Processos versus Caos e a Arte

Um 737 não é uma obra de arte ou uma “peça” artística e artesanal. Um 737, assim como uma empresa, não é regido pela Teoria do Caos. Um 737 é um amontoado de alumínio, fios, materiais compostos, aviônicos, sensores, regras e check-lists burocráticos. E ele é assim por uma boa razão, e ele funciona por uma boa razão. Sim, aviões caem de vez em quando, empresas quebram de vez em quando, projetos idem (em maior ou menor quantidade). Entretanto, isso não é motivo para descartar, tampouco invalidar métodos ou processos consagrados como (pense em qualquer coisa: ITIL, Scrum, etc) – mesmo que você os adote parcialmente. Muito menos é motivo para satirizar e polemizar com bobagens do gênero: “agile é coisa de moleque”, “adultos não fazem DevOps”, etc… algo que me soa mais ou menos como: “meu pau é maior que o seu” e variações infanto-adolescentes do gênero… Então, da próxima vez que for voar um teco-teco, não diga que você não quer fazer um plano de vôo por que é burocrático e não vai funcionar. Ou então, que os planos de vôos existentes só servem para aviões do porte do 737, e que um teco-teco não vai se beneficiar em usar um. Não é bem assim. Você sabe que não precisa usar ITIL de cabo-a-rabo, da mesma maneira que você não precisa voar um teco-teco usando Lorenz, VORs, DMEs, Tacans, Glonass, ILS, WAAS, sistemas hiperbólicos (a sopa de letrinhas vai longe)… Contudo, você precisa sim, seguir algumas regras e criar (e buscar) alguns padrões. E da próxima vez que for voar, rumo a algum congresso cheio de gurus, agradeça a existência de processos e práticas consagradas… afinal, “adultos” voam em aviões, não em maquetes e/ou projetos que ficaram na planta das fábricas da Boeing e/ou Airbus… 😉

Não estamos mais na era da aviação de ouro, dos vôos à arco e flecha, da aventura. It’s better to be down here wishing you were up there, than up there wishing you were down here.